Campo Pequeno – A ‘última’ ovação a Salvador e o revigorar de um predestinado

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Rui Salvador é um dos nomes consensuais e incontornáveis da sua geração. Toureiro de raça, toureiro com classe, toureiro da cabeça aos pés. Teve hoje em Lisboa uma merecida homenagem pelo seu 40° aniversário de alternativa, numa noite que marcara, igualmente, a sua despedida da catedral do toureio a cavalo!

Foi bonito… é dificil colocar em palavras o que se viveu. Confesso que ver as lágrimas de um homem dos toiros, que aprendi a gostar desde pequeno, na minha terra, naquela que ele escolheu para se radicar, me comoveu. Salvador viu-se obrigado a dar duas voltas após a quinta lide da noite, dada a forte insistência do público, que jamais permitiria que um dos seus não fosse devidamente premiado por toda uma vida dedicada ao espetáculo que tanto gostamos. O toureiro viu-se ainda obrigado a despir a casaca e a “deixá-la para a eternidade” neste ruedo que o viu brilhar, como a mais cintilante das estrelas, em tantas, tantas noites!

No plano artístico, Salvador nada tem a demonstrar. Está na temporada que elegeu para se despedir e, como em qualquer outra função, o mais importante será desfrutar e colher os frutos das árvores que foi plantando. Frente ao primeiro do lote, onde brindou a lide ao seu apoderado a quem carinhosamente trata por ‘segundo pai’, José Carlos Amorim, desenhou uma lide em crescendo, que iniciou com maior desacerto e veio escalando em termos qualitativos com o maior entendimento do toiro que teve por diante. Destaque para a cravagem de duas bandarilhas curtas de boa nota, terminando a sua primeira aparição com um ferro de violino, em terrenos de compromisso. Antes do cair do pano, Salvador teve a possibilidade de dar lide a mais um astado, que fora aplaudido pelo trapio exibido. Esteve bastante astuto na forma como o entendeu, dando-lhe a lide adequada, pese embora, aqui e ali, tenham havido alguns desacertos. Nunca se poderá dizer que este homem se acomoda, porque a qualquer momento, ‘tira um coelho da cartola’ e mostra que está aí para a luta!

Paralelamente a uma justíssima homenagem, Miguel Moura , que sofrera um duro revés no passado fim de semana em Coruche, apareceu aparentemente revigorado, com ganas de triunfar e seria completamente descabido não lhe dar o destaque artístico, esta noite. O cavaleiro de Monforte, como é sabido pelo público mais aficionado não nasceu com a estrelinha do charme, da cativação do público menos sabedor. É um jovem simples, mas predestinado, que transforma a frugalidade em autênticas obras pintadas a ouro, nos quadros mais onerosos de um qualquer museu. A primeira lide é, exatamente, isso. Uma peça com princípio, meio e fim, bordada por uma brega de uma qualidade acima da média, com momentos de cravagem destacados, como é o caso da sorte de gaiola com que recebeu a rês e duas curtas que deixou em sortes bem preparadas e rematadas, que motivaram o soar dos acordes da banda. Frente ao último da corrida, houve pormenores que não correram de feição, entre eles a passagem em falso que antecedeu o primeiro curto e um toque na montada aquando da cravagem do palmito com que fechou a parte equestre do festejo. Há que saber o momento certo de sair mesmo que, por vezes, não se faça a vontade a quem paga bilhete. Ainda assim há a destacar uma sorte de gaiola bem conseguida, uma brega cadenciada a duas pistas culminada com ferros em terrenos de dentro e um palmito em sorte frontal, que resultou digno de registo.

Rui Fernandes é um toureiro com muito cartel em terras de nuestros hermanos e a classe com que se exibe na arena não deixa ninguém indiferente. Frente ao primeiro que sorteara, desenhou uma lide competente e plena de elegância, respeitando os tempos que o toiro necessitava, destacando-se na brega e na cravagem de dois curtos da série. Frente àquele com que encerrou a sua passagem pelo albero da capital, o ginete da Charneca da Caparica teve uma lide intermitente, conseguindo momentos de alto nível e outros que o melhor é não recordar. A preparação e cravagem do primeiro curto, bem como o remate do último que deixou, onde o astado reagira de forma intempestiva, perseguindo a montada, em modo TGV, dando volta e meia à Praça são louváveis. A passagem em falso e o forte toque que acabou por consentir marcam uma fase de menor lampejo do artista, sendo ‘pitado’ por alguns, não podendo ignorar-se o facto de que tem aura e não é indiferente, por outro lado, a muito do público que preencheu, nesta noite, cerca de três quartos fortes da lotação.

Para o fim deixei o comentário à noite de Francisco Palha. O cavaleiro ribatejano é de extremos, tem dentro de si uma lamparina que tanto se acende como, de repente, se apaga. Esta inconsistência prejudica-o e nem sempre acaba bem visto. Hoje foi uma dessas noites. Tudo correu mal? Não! Frente ao terceiro da ordem, há a destacar aquele que é, provavelmente, o ferro mais destacado de todo o espetáculo. Uma sorte gaiola soberba, com os momentos bem definidos, cravada com mão certeira e de forma cingidíssima. Terminou a sua primeira passagem pela arena da capital com dois ferros de elevada nota, mas depois de ter um momento de menor fortuna, ao consentir forte toque na montada, quando tentava cravar a primeira bandarilha curta, que não fosse esse senão teria sido épica. Frente ao que completava o seu lote, Francisco não o conseguiu entender. Aplicou o seu conceito mais agressivo, onde imprime uma velocidade acima da média e ataca o oponente por diante, batendo na cara do animal. Faz sentido? Sim, tem impacto. Resulta sempre? Não, basta que as características do toiro não se adaptem e resulta em passagens em falso ou toques, que infelizmente para si, sobressaíram perante as qualidades que apresenta e tem. Lidou sem música e não lhe foi concedida volta.

No que respeita às pegas da noite, foram repartidas por duas formações: Évora e Coruche, tendo sido uma noite onde a eficácia dominou e não se deram demasiadas veleidades aos de ‘Silva’. Pela formação alentejana avançaram na linha da frente: João Madeira João Cristóvão e José Maria Caeiro que consumaram na tentativa inicial e José Maria Passanha à segunda tentativa. Pela formação que viajou desde o concelho do Sorraia teve como protagonistas principais Tiago Gonçalves que resolveu na primeira tentativa; João Formigo e António Tomás que necessitaram de ir lá por duas ocasiões para levar as reses por vencidas e o novel cabo, que hoje se estreara em funções, João Prates, a sesgo e com ajudas carregadas ao quarto intento.

O curro de toiros da ganadaria do Dr. António Silva, esta noite homenageada, estava imponente no que toca à apresentação, sem excesso de peso, transmitiu emoção, teve mobilidade e possibilitou aos toureiros dar mostras da qualidade que possuem. Destacar como piores, o sexto e sétimo da noite, animais que poderei considerar como mansos encastados, tendo os restantes bastantes teclas por onde tocar. Reconhecimento por parte da inteligência, ao conceder volta à representante da ganadaria logo após a lide do primeiro da noite e da minha parte ao afirmar, sem grandes receios, que foi dos melhores curros que vi sair nos últimos anos, não possibilitando sequer que se possa dizer que uma corrida de oito toiros tenha sido massuda.

A corrida, que mais uma vez teve excesso de pó a atingir as bancadas, foi dirigida com bastante critério (com excepção da música atribuída após o quarto curto a Rui Fernandes, naquela que foi a sexta lide da noite), pelo delegado técnico tauromáquico Ricardo Dias, assessorado pelo Dr. Jorge Moreira da Silva e pelo cornetim José Henriques.
O reconhecimento dos colegas acartelados, nesta corrida, por Salvador é tal, que o subiram aos ombros, passeando-o pela arena enquanto recebia a sua última ovação, neste que foi o local onde recebeu a sua alternativa.

Fotos: Daniel Cepa (CLIQUE PARA AMPLIAR)

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