Dou por mim a pensar que cada vez mais se sente uma tristeza a instalar-se na arena, um cansaço que já não se deve ao facto de vermos recorrentemente toiros de ganadarias, cujos produtos não transmitem a emoção necessária, ou de verificar cartéis repetitivos onde os nomes se replicam de forma constante, mas sim do espírito no qual a tauromaquia está embuído. É como se o tempo, esse velho e implacável mestre, tivesse desenhado um quadro onde a arte e a coragem se tornaram meras marionetas nas mãos de empresários, apoderados, os verdadeiros senhores de um “teatro de sombras”.
Os grupos de forcados, que deveriam ser a alma coletiva e indomável do espetáculo, hoje são vítimas de uma dança de cadeiras sem sentido, onde se trocam contratos como se trocasse uma moeda vã, numa baldraca que não honra nem a sua história nem a entrega dos seus antigos elementos que palmilharam quilómetros e sofreram demasiados dissabores para se verem reconhecidos. O que era tradição, suor e fé, é atualmente adjudicado e remendado conforme conveniências, uma mercadoria que se troca como outrora se trocavam especiarias nas feitorias do Oriente.
E os toureiros? Como em tudo o que fui retratando neste escrito, raras excepções existem e só se sentirá quem se revir, cada vez mais se escondem. Esconderijos escavados atrás de contratos, de longa duração, avençados, entregues a uma segurança que os adormece. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, mas nos tauródromos atuais, essa alma parece minguar a cada temporada que passa. Não há risco, não há entrega, apenas a certeza do lugar garantido, o conforto que mata o ímpeto.
Esta corrida pelo seguro, pelo calculado, rouba-nos a essência da imagem que formamos, ainda que subconscientemente, de um toureiro: o confronto com o impossível, a luta com o medo e a glória. É uma metáfora triste para um mundo onde o sonho se compra e se vende, onde a paixão é refém da conveniência.
Mas, infelizmente para todos nós, não é diferente fora da praça. Desengane-se quem pense o contrário. Num Portugal que tantas vezes parece dormir sob o peso da resignação, “vale mais o esforço que a esperança vã” e essa é cada vez mais reflexo da verdade esquecida.
A tauromaquia, que sempre foi espelho da vida, reflete agora uma lente estilhaçada, onde se vêem fragmentos de um tempo em que a coragem e a entrega eram leis inquestionáveis. Hoje, os bastidores governam a festa e o conclave, esse que é feito de espectadores atentos, mas muitas vezes resignados, sente a ausência do que o fazia vibrar.
Se a arte se rende ao cálculo, o risco é vetado e o que sobra é um espetáculo frio, sem alma nem fúria. Como escreveu Sophia de Mello Breyner: “A beleza não se vende, a beleza não se compra, a beleza é um risco que a vida oferece.” O labor do toureiro sempre teve essa vulnerabilidade, e essa terá de deixar de ser cedida a interesses efémeros.
Meus caros, a esperança ainda reside neste ser que vos escreve, que também falha diariamente mas a quem não custa aceitar que está num processo de melhoria contínua e a quem a estagnação assusta e que se recusa a aceitar que este espetáculo que tanto lhe diz seja reduzido a números e trocas. Para contas e algarismos já lhe basta o ofício que lhe oferece o pão de cada dia, esse sim, conquistado com suor e mérito, pois, ao contrário de tantos que por aí andam, poderá dizer, sem vergonha e com honra, que jamais recebeu um único cêntimo da tauromaquia. Será sempre dos que luta para que o toureio volte a ser entrega total, uma dança com o risco e com a morte, uma poesia escrita no ar com sangue e suor. Porque “somos feitos da mesma matéria dos sonhos” e a tauromaquia é, antes de tudo, uma quimera que merece ser sonhada com toda a alma.
Texto: Rodrigo Viana