Torres Vedras é uma terra de nobres contradições: entre o folião e o forcado, entre a matrafona e a montera. Aqui, onde o Entrudo reina com liberdade e irreverência, também o touro encontra praça e respeito, como se cada capote traçasse um gesto de identidade. É nesta várzea, recortada por vinhas e serras, que a tauromaquia, ainda que discreta, teima em florescer.
Não se imagina Torres sem os seus Carnavais, sempre democráticos, populares e bastante irreverentes. Mas também não se compreende a alma torreense sem passar pela tradição taurina de locais como Ribaldeira ou Runa, onde as vacadas e as garraiadas animam as festas com o mesmo fervor com que os foliões tomam as ruas em Fevereiro. A alegria do povo, afinal, expressa-se tanto no riso do boneco como no olé das bancadas.
E se falamos de resistência, lembremo-nos das Linhas de Torres, cicatrizes heroicas da pátria, muralhas erguidas contra o invasor francês. Atravessam-nos as localidades que, hoje, são também palco de tradição taurina, como Ventosa ou São Pedro da Cadeira onde o gado bravo corre e o povo se junta, como outrora os soldados, com alma e coragem. A história repete-se: antes contra Napoleão, agora contra o esquecimento.
Torres Vedras, onde o tempo faz curvas como os touros no redondel, guarda na sua alma a beleza de manter viva a Festa Brava. Mesmo entre serpentinas, há sempre espaço para um ferro bem colocado. E no meio da gargalhada surge o respeitoso silêncio antes do momento da pega.
João Moura Caetano apresentava-se motivado, ainda embalado pelo triunfo da véspera na emblemática Catedral lisboeta. No entanto, não conseguiu prolongar esse bom momento. O primeiro toiro do seu lote, com ferro de João Ramalho, revelou-se escasso de mobilidade e praticamente alheio ao momento da reunião, o que condicionou severamente o labor do cavaleiro. A tentativa de o colocar em sorte com sucessivos lances de capote não resultou em benefício algum, antes expondo ainda mais as limitações do oponente. O tempo de lide escoou-se assim sem que houvesse qualquer momento de verdadeiro relevo artístico.
Já com o segundo do seu lote, ostentando ferro da sua ganadaria, Moura Caetano mostrou desde o início outra intenção. Recebeu o toiro nos médios, em redondo, deixando antever uma postura diferente da anterior. A lide teve mérito e desenhou-se com correção, pontuada por hermosinas e uma brega cadenciada como tão bem sabe desenvolver. Na cravagem dos curtos, a ligeira batida não teve sempre o efeito desejado, muito por culpa da escassa prontidão do astado. Contudo, foi uma atuação de nota positiva, manchada apenas pelo excesso de voluntarismo após soar o segundo aviso, ao tentar cravar mais um ferro. A bandarilha ficou pelo chão e a que se seguiu resultou traseira, penalizando o conjunto final.
Marcelo Mendes abriu praça diante do melhor exemplar do festejo, pertença da ganadaria de Irmãos Moura Caetano, que colaborou com mobilidade e nobreza. Iniciou com um bom ferro à meia volta, junto às tábuas, rematado com uma pirueta ajustada, o que lhe valeu o soar dos acordes da banda. Contudo, a opção pela cravagem com batida acentuada ao pitón contrário revelou-se menos eficaz, pois o momento da reunião perdeu ligação. Fechou com um palmito adornado nos cites, arrancando uma reação entusiasta do público. Já com o segundo do seu lote, um manso perdido da ganadaria ribatejana, encontrou grandes dificuldades. O toiro tinha pouca força e quebrou-se desde cedo, logo na fase de compridos, o que torna questionável a opção de cravar três ferros desta tipologia, dada a evidente debilidade do oponente. O astado refugiou-se em tábuas e resistiu à investida, obrigando o ginete a recorrer às sortes a sesgo. A insistência em querer cravar mais um, já depois de ultrapassados os limites do animal, levou a que andasse cerca de quatro minutos sem conseguir deixar o ferro. Com apoio de um peão de brega da sua quadrilha, resolveu com uma sorte de violino que não teve brilho, numa atuação onde a banda, de forma justa, não recebeu ordem para tocar.
David Gomes encerrou a terna e foi brindado com um exemplar de Ramalho que saiu com pata, causando alguma apreensão inicial. A fase de compridos foi bem conseguida, com dois ferros de mérito. O toiro foi a menos e, com o avançar da lide, tornou-se mais reservado no momento da reunião, exigindo mais do cavaleiro. A resposta foi de qualidade: três curtos de colocação irrepreensível, com destaque para o primeiro, pela sua cingida reunião. Fechou com um violino e um palmo em terrenos de dentro, ambos de valor. O último toiro da noite, da divisa alentejana, inutilizou-se após o segundo comprido, tendo sido recolhido sem que se consumasse a restante lide nem a tentativa de pega, decisão correta e conforme o estipulado pelo Regulamento dos Espetáculos Tauromáquicos, por parte da inteligência.
No que respeita às pegas da noite coube ao Grupo de Forcados Amadores do Ribatejo abrir praça, com André Laranjinha a pegar com eficácia à primeira tentativa. Competente no cite, reuniu com decisão e contou com uma boa coesão da formação no momento de ajudar, consumando sem dificuldades de maior. A segunda pega do grupo ribatejano foi de execução mais demorada. O forcado da cara, André Martins, foi surpreendido por uma arrancada solta da rês, não conseguindo reunir com a eficácia necessária. Seguiram-se duas tentativas falhadas, ambas marcadas por reuniões em que se empranchou, impedindo o fecho da sorte. Apenas à quarta tentativa, já a sesgo e com ajudas carregadas, logrou resolver a papeleta e consumar a pega.
Pelo Grupo de Forcados Amadores de Monforte, Vítor Carreiras foi o primeiro forcado indicado para tentar a pega de caras. Concretizou na tentativa inicial, ainda que com algum desencontro: o toiro fugiu ao grupo e houve instantes de incerteza, com os ajudas a caírem sobre o forcado, que felizmente se manteve agarrado, em parte com alguma dose de sorte no desenlace. Na segunda prestação do grupo, José Santos rubricou uma pega muito correta. Citou com verdade, reuniu com competência e foi meio caminho para o sucesso ao primeiro intento, numa execução limpa e eficaz.
Fechou-se o capítulo das pegas com o Grupo de Forcados Amadores de Monsaraz. Na única tentativa de pegas do grupo, Rúben Grilo não foi particularmente feliz no momento da reunião, mostrando alguma falta de clarividência. Ainda assim, suportou o primeiro derrote, tendo o toiro seguido o seu caminho. A sorte foi efetivada à primeira tentativa havendo mérito por parte dos ajudas, que se empenharam com decisão.
Numa noite em que se cruzaram o espírito festivo do Carnaval, com a seriedade da Tauromaquia, o público acorreu em número generoso (cerca de 3/4 fortes da lotação do tauródromo portátil) a um espetáculo onde houve de tudo: entrega, boas intenções, ferros com brilho, dificuldades naturais, e sobretudo, vontade de triunfar.
A corrida foi dirigida com exemplar rigor pelo Delegado Técnico Tauromáquico Ricardo Dias, que se mostrou atento e justo nos tempos e decisões, assessorado com competência pelo médico veterinário Dr. Jorge Moreira da Silva, e com os toques cerimoniosos do cornetim José Henriques, que deu a cada momento a solenidade merecida.
Texto e Foto: Rodrigo Viana