Por muito que custe dizê-lo, a tauromaquia portuguesa vive uma era onde o “quase” se tornou norma, e o “autêntico” uma excepção. A cópia barata substituiu a verdade do improviso, e o triunfo artificial ocupa o lugar da emoção genuína. Mas afinal, o que estamos todos a fazer à Festa?
Touradas de estúdio
Hoje, as lides a cavalo já não se constroem frente ao toiro. Constroem-se entre as paredes de uma quinta, com uma tourinha ou um bezerro aldrabado para se ensaiar o que depois, se o toiro da corrida assim o permitir, se apresentará ao público. Mas a verdade é que o toiro raramente deixa. E quando não deixa, há um vazio que se instala. Não há alma nem improviso, apenas uma tentativa frustrada de cumprir um guião escrito a lápis no papel. Francisco Palha, num momento de honestidade, que temos de congratular, dada a raridade dos mesmos entre os intervenientes da festa, reconheceu isso mesmo publicamente: “a Festa é quase sempre mais do mesmo”. Pois claro que é. A sua encerrona é excepção à regra, uma gota das boas num oceano de nada. Quando a maioria dos cavaleiros leva de casa a lide feita, esquecendo-se que o toureio é como a vida (exige resposta no momento), o que esperar? Pois bem, fácil! Triunfam os mesmos, é certo. Mas quantos desses triunfos não são cozinhados nos bastidores, com os ingredientes bem escolhidos e o forno mediático no ponto? Muitos. Por isso mesmo, o público, que até não é parvo, começa a desconfiar. Porque vê sempre os mesmos gestos, os mesmos adornos, os mesmos pares de bandarilhas “a pedido” e, claro, a batida ao piton contrário que virou obrigação. Como se o toiro não merecesse respeito, mas antes fosse pretexto para malabarismos. Linearidade no toureio? Não existe. E se existe, que venham explicar-me o que é tourear. Quando perceberem que a autenticidade de cada um e o improviso traz emoção então estarão mais perto do verdadeiro triunfo.
O apeado em agonia: os nossos matadores caminham sem norte
Do toureio a pé, há que dizer sem artimanhas que em Portugal está moribundo. E só ganha pulso quando por cá passam os artistas de além-fronteiras. Porquê? Porque os nossos matadores, os poucos que restam com coragem de vestir de luces, vivem num ciclo vicioso de oportunidades escassas e prestações mornas. O “benzinho” tornou-se modo de vida. E depois surge o escândalo maior: a escolha dos toiros. Diz-se por aí que os artistas espanhóis “baixam os cachets para vir cá”. Pois que não venham. Porque se o preço é virem escolher novilhos com cara de bezerro, que mais parecem saídos de um festival de beneficência do que de uma corrida de temporada, então o prejuízo é maior do que o suposto prestígio que trazem. Esgotam praças? Às vezes. Mas será que compensa pagar cem mil euros para encher os bolsos de uma figura e ver um festival disfarçado de corrida? Prefiro ter dois terços de bancada bem composta e ver um espetáculo sério. Porque a seriedade ainda é a única forma de conquistar respeito.
Forcados: a última frente de verdade
O número de grupos de forcados em Portugal é, convenhamos, exagerado. Mas ao contrário do que muitos pensam, não é necessariamente um problema. É a sua existência que alimenta a afición local, que dá sentido a muitas festas e que arrasta para as bancadas gente que nunca lá iria apenas ver os “figurões” da arte equestre.
A verdade nua e crua é esta: muitos vão à praça ver os forcados. Pela incógnita da pega, pela bravura dos rapazes, pela verdade que há num corpo lançado contra o animal. E não é acaso. Porque depois de se ver duas ou três actuações das tais “estrelas”, o enredo está fechado. Já se sabe quem vai triunfar, onde e como. Já nas pegas, a dúvida permanece até ao momento do embate.
Ganadarias: entre o brio e a manipulação
Se há algo que funciona, com erros, sim, mas com evolução, é o campo bravo português. Os ganaderos têm feito um trabalho sério, silencioso e por vezes ingrato. Escolhem o melhor que têm, preparam o produto com critério. Mas depois… quem escolhe os toiros para as corridas? Muitas vezes não são eles. E aí reside o problema. Há uma procura constante de um toiro que sirva, que permita a lide “redondinha”, sem perigos. Um toiro de palco, que potencie o artista e anestesie a emoção. E quando isto acontece, o resultado é previsível: banalidade.
A imprensa anuncia mais um triunfo. Mais um. Mais um. E, no entanto, a emoção, essa, não esteve lá. Os que assistem com olhos de ver já sabem o que esperar. Podem até escrever a crónica antes da corrida, mudando três palavras e cinco vírgulas depois. Como não ficar assustado com isso?
Imprensa: Quando “o teclado” se vende
Diz-se que todos erram. Concordo. Mas há erros e há embustes. Há quem escreva o que sente e quem escreva o que lhe pagam. E quando a verdade jornalística se rende ao patrocínio, a Festa perde credibilidade. É gritante como alguns “figurões” triunfam todas as tardes nos sites de sempre. Impressionante como os mesmos escribas, semana após semana, narram epopeias que só eles viram. O problema é que o público já não é ingénuo. Já percebe que há um jogo montado, um teatro fora da arena que condiciona o que se escreve. E quando se perde a confiança na imprensa, perde-se o fio condutor da própria tauromaquia. Não há mal nenhum em elogiar, bem sei que sou daqueles que, perante as atuais circunstâncias, mais dificuldade tem em fazê-lo e isso não agrada às gentes da festa, mas não me peçam para escrever o que gostariam que fosse publicado, porque isso, talvez por defeito de profissão provoca em mim repúdio. Se também erro? Certamente como todos vocês que estão a ler. Uma coisa garanto, nunca foi nem nunca será premeditado. Mas que fique claro que a criação de narrativas para alimentar egos nunca encherá praças. Alimenta apenas o vazio que já vai sendo grande.
Festa: ou volta ao povo, ou morre nas mãos das elites
Chegamos ao ponto essencial. A Festa é e sempre foi do povo. E se hoje as elites a renegam, se os políticos a ignoram ou atacam, pior ainda é ver empresários e artistas afastarem o povo pela via dos preços. 25€ para uma galeria de segunda? 40€ por um lugar a meio da bancada em praças de terceira? 65€ a meio da bancada de uma praça de primeira? Estamos no Santiago Barnabéu? Estamos no Allianz Arena? Temos Cristiano, Messi e Yamal na tauromaquia e eu ainda não tinha dado por isso? Quem pode pagar isso hoje em Portugal? A resposta é: quase ninguém. E o resultado é este: praças meio vazias, ou cheias com público envelhecido que vai desaparecendo com o tempo. Há gente jovem nas praças? É um facto e são filhos de quem? Reflita-se! Culpados? Muitos. Os empresários que contratam e organizam, os artistas que cobram cachets irreais e completamente inusitados para a realidade, taxas absurdas cobradas por associações necrófagas, obrigatórias e exigidas por tudo e por nada. E depois queixam-se que não há público para todas as corridas e que são sempre os mesmos. Pois claro que não há. Não pode haver quando se prefere cobrar fortunas por hoje em vez de garantir que haja festa amanhã. Não será o meu trabalho e o meu rendimento que acabará, mas sim o vosso! Não pensem que é o “gajo que só serve para dizer o que está mal” que vai perder…
A tauromaquia portuguesa precisa de parar de se ver ao espelho e começar a olhar para a realidade. A capacidade de comunicação é um atributo do ser humano pelo que quando houver união entre todos estaremos mais perto da evolução premente. Enquanto se viver de cópias, de triunfos ensaiados, de crónicas pagas e de bilhetes a preços proibitivos, a festa não morrerá pela força dos anti morrerá pela inércia dos próprios.
Acordem! Ainda vamos a tempo!
Texto: Rodrigo Viana