“Ó gente da minha terra, agora é que eu percebi“… Neste 9 de agosto, estas palavras podiam ecoar pelas ruas de Nave de Haver. Não como simples versos de um conhecido fado de Amália Rodrigues, mas como uma verdade vivida por cada emigrante que regressa no verão. Só quem partiu sabe como a distância afina o som das raízes.
“Esta tristeza que trago, foi de vós que recebi”. Não se tratará de uma tristeza amarga mas antiteticamente de uma saudade doce aquela que é sentida por este povo ao lembrar as ruas, o campanário, o cheiro a terra quente e o tom das conversas no largo. De França, do Luxemburgo, da Suíça e da Alemanha, chegam carregados de histórias e de vontade de celebrar.
E aqui, a festa é mais que corrida. A Festa das Penhas é como uma oração que desce dos montes e se espalha pelas casas de pedra. As montarias de caça lembram a paciência e a coragem de outros tempos, o convívio entre vizinhos, a ligação à terra e aos ciclos da natureza. “E pareceria ternura, se eu me deixasse embalar”, ternura essa que se mistura com a tensão na praça em dia de corrida, mal o toiro é avistado ao fundo dos currais.
As homenagens abriram a tarde, recordando Manuel André Jorge, representado pela família, o cavaleiro Rui Salvador, que celebrou 41 anos de alternativa, e o novilheiro Leonardo Passareira.
João Ribeiro Telles abriu praça frente a um castanho de Jorge Mendes, cedo parado e com pouca força, dificuldade notada logo nos compridos. Telles procurou mudar-lhe terrenos, sem sucesso pleno, já que o toiro se desligava facilmente, procurando distrair-se ora com quem estava na teia, ora com quem estava nas bancadas. Na cravagem, a colocação não foi a mais ortodoxa, terminando com dois curtos através do Ilusionista, menos cingidos que o habitual, devido à tardia investida do oponente. No quarto da tarde, subiu o tom artístico. O oponente era mais franco e tinha mais teclas por onde tocar, sendo mesmo premiado com volta de agradecimentos ao representante da sua ganadaria. O cavaleiro citou de praça a praça, consentindo a investida e cravando en su sítio, rematando com dois palmitos de excelente nota. Lide de nível superior.
Seguiu-se António Prates, perante um manso de Jorge Mendes que apenas arreava quando via hipótese de atingir a montada. A fase de compridos foi árdua, com duas passagens em falso devido a alegados problemas com a ferragem. Nos curtos, maior dinamismo e duas bandarilhas de boa nota. No segundo do lote, mais colaborante mas a adiantar-se no momento da reunião, Prates foi em crescendo, terminando com duas bandarilhas de qualidade.
António Ferrera incendiou os tendidos logo de saída: afarolada de rodillas en tierra e tércio de capote variado entre verónicas, chicuelinas e revoleras. O novilho de Ascensão Vaz, marcado com o algarismo 2, mostrou pouca força, caindo recorrentemente, mas com qualidade de investida suficiente para garantir volta ao representante da sua ganadaria. Nas bandarilhas, três pares de qualidade, o último em sorte de violino. De muleta, iniciou com uma série de cinco derechazos e passe de peito, impondo, como já vem sendo hábito, o seu ritmo à banda. Depois, toureio de proximidade, em redondo, até esgotar a investida. Duas voltas ao ruedo no final. No segundo do lote, mais brusco e com menos recorrido, esteve solvente de capote, brilhou nas bandarilhas e cumpriu de muleta com o seu estilo tremendista, chegando facilmente ao público. Saiu em ombros, tal como os dois cavaleiros, apesar de uma queda aparatosa, na volta final, das ‘cavalitas’ de quem o transportava.
No que diz respeito à forcadagem, pelo grupo que viajou desde Alcochete, Daniel Ferraz foi o primeiro homem a ser indicado, consumando à primeira tentativa
Esteve competente a recuar, reunindo com a decisão necessária que o levou a efetivar. Rodrigo Machado também pegou à primeira, corrigindo uma reunião que inicialmente não foi a mais ortodoxa, tendo uma ajuda eficaz de todos os elementos que o seguiam.
Pela formação do Alto Alentejo, neste caso da vila de Arronches, Afonso Real enfrentou investida intervalada e ensarilhada, reunindo sem a perfeição desejada mas com a devida eficácia, consumando logo no primeiro intento. Luís Rosado teve pega limpa, com o toiro a colocar bem a cara e a seguir o seu caminho estando competente o restante grupo.
A corrida que contou com uma lotação a rondar os três quartos fortes foi dirigida por Sandra Strecht, assessorada pelo médico veterinário Dr. João Ferreira e pelo jovem e competente cornetim, Nuno Massano.
Nos tendidos deste albero raiano, cada abraço que avistei foi um reencontro, cada aplauso que ouvi, uma promessa: a de que a tradição continuará viva enquanto houver gente que a sinta no coração. Nave de Haver não cantará este fado apenas com a voz, canta-o com a sua festa, com a sua corrida, com o seu povo!
Texto e Foto: Rodrigo Viana