A água nunca se perde, muda de caminho, mas tende sempre a chegar ao seu destino.
Foi a Rainha D. Leonor quem, há séculos atrás, trouxe estas águas termais à cidade, dando-lhes vida e fama, curando corpos e alimentando histórias. Hoje, essas águas deixaram as fontes e o hospital termal e correram para aqui, trazendo nas ondas a memória e a coragem de quem sabe enfrentar a corrente.
Nesta correnteza taurina, três rios distintos serpentearam-se ao longo da tarde. João Ribeiro Telles foi como um curso antigo, elegante, mas nem sempre seguro – às vezes a água desviava-se, deixando obstáculos à vista. Francisco Palha, por sua vez, dá imagem de caudal forte, mas parece bloqueado, perdido na própria foz, sem conseguir conduzir a corrente de forma contínua. Já o jovem Vasco Veiga tentou navegar por entre pedras e redemoinhos, mostrando coragem, mas a corrente arrastou-o por momentos, evidenciando a falta de experiência típica de quem ainda aprende a ler o leito do rio.
A estas águas juntou-se o matador Pedrito de Portugal, que regressava às arenas nacionais como um rio que finalmente reencontrara o seu leito, apesar de a tarde ter sido periclitante.
As margens desta tarde foram guardadas por seis toiros e um novilho com a divisa de Manuel Veiga, que, ao invés de marés vivas, se revelaram águas paradas, de pouca corrente e sem força para empurrar o espetáculo. E quando a força dos rios encontra a rocha, é aí que entram os forcados. Hoje, os Amadores de Santarém e os Amadores de Caldas da Rainha estavam prontos a firmar pé como quem segura a própria nascente, o que nem sempre veio a suceder.
Mas antes que a primeira onda se soltasse, esta tarde levou também na sua corrente a memória e a saudade de um homem que sabia ler a alma de um toureiro. Luís Morais Sarmento, antigo crítico tauromáquico, apoderado e amigo, para Pedrito de Portugal, mais do que um mentor, foi um verdadeiro pai. E que falta, hoje, fez! Homem genuíno, de palavra firme e coração aberto, acreditou, lutou e ajudou a erguer o sonho de um artista. Hoje, neste reencontro com as arenas, Pedrito carregava consigo não só a sua coragem, mas também a força silenciosa de quem o guiou nas águas mais difíceis.
Senhoras e senhores, a praça estava cheia e a água chegara. Agora, havia que deixá-la correr…
O rio que secou cedo demais…
Se na abertura desta tarde a água chegava à praça com promessa de corrente viva, cedo se percebeu que, por vezes, até nos rios do Oeste a maré pode estagnar. Tal como certas pêras que amadurecem antes do tempo, a frescura anunciada cedo perdeu viço, deixando no ar um travo de compota demasiado doce para quem esperava sumo e polpa.
O minuto de silêncio por Manuel dos Santos, homem que teria completado cem anos sendo referência maior do toureio apeado, foi mais breve no coração de alguns do que na alma de outros. Pedrito de Portugal, regressado, fez cortesias à espanhola, como quem prefere mudar o curso de um afluente, ignorando a nascente a que todos deviam beber. Foi de uma clara falta de respeito para com o homenageado e que o seu brinde aos céus não apaga.
João Ribeiro Telles abriu com um toiro bem rematado, que saiu com ímpeto de nascente, zurrando como quem desagua sem pedir licença. Os primeiros curtos tiveram garbo, mas o caudal foi diminuindo até quase se perder em poças. Com o quinto da ordem, a água foi interrompida logo após o primeiro gotejo, visto o toiro estar lesionado o que o levou de volta aos currais. O sobrero que lhe coube depois era ribeiro pequeno, mas mais disposto a correr. Mesmo assim, o leito irregular fez a cana partir mais de uma vez, ficando um ou outro gole saboroso, como o quarto curto, de boa junção e batida, mas sem que o conjunto transbordasse. Com o Ilusionista, embora o ruído se fizesse sentir, não atingiu momentos outrora vividos, consentindo inclusive um toque.
Francisco Palha entrou como quem promete tempestade, brindando ao jovem Vasco Veiga. Porém, o seu primeiro adversário era mais lago que rio, um manso, parado junto às tábuas. A música soou cedo demais, como se se quisesse forçar a maré alta em dia de estiagem. No segundo do lote, a água vinha com tão pouca força que por duas vezes se deitou no leito, procurando refúgio onde o sol não bate. Houve dois curtos de qualidade, mas logo depois o rio secou, deixando apenas leito de pedra. Por muito que digam que a corrente tem fluído com categoria, a verdade é que o bloqueio existe e é premente mudar a página, caso contrário, corre o risco de cair num poço sem fundo.
Pedrito de Portugal, no seu primeiro, enfrentou um colorado seco de nascente, sem caudal para alimentar sequer uma rega. De capote, apenas uns salpicos; de bandarilhas, tércio bastante discutível de Miguel Maltinha e Sérgio Nunes, com dois meios pares a transmitir má imagem e de muleta, nem uma série inteira, apenas passes soltos que evaporaram no ar. No último da corrida, um fio de água mais promissor: verónicas com a estética que lhe conhecemos, dois bons pares de bandarilhas de Sérgio Nunes e uma série inicial de muleta que fez tocar música, ainda que injustificada, como quem brinda com vinho antes de pisar a uva. Pela esquerda, pouco houve a espremer, terminando a sua atuação com cercanias e toureio em redondo.
O jovem Vasco Veiga, na sua prova de praticante, encontrou pela frente uma água com a marca do seu próprio lar: ferro do seu pai. Mas a rês vinha à deriva, tinha pouca vontade, o que o obrigou a remar contra a maré. Deixou três compridos, o segundo dos quais de boa nota, e uma série de curtos intercalada entre
acertos e falhas, tendo ainda assim um público consigo que o aplaudiu. A melhorar claramente o momento da reunião que não foi de todo o seu ponto forte esta tarde.
Os diques humanos que, esta tarde, mostraram ter fendas
Pelos Amadores de Santarém, abriu caminho Francisco Cabaço, que citou a passo até aos médios como quem conduz a água com calma até à comporta. Carregou por duas vezes, chamou a corrente com inteligência e fechou-se à córnea de forma eficaz, não dando espaço para que o toiro o pudesse sacudir. O grupo, menos coeso, deixou-o ainda fugir junto das tábuas, mas a pega ficou consumada logo à primeira tentativa.
Seguiu-se Caetano Gallego, que recebeu o toiro com competência, sem se descompor nem quando um toque nos joelhos lhe quis cortar o caudal. Fechou-se firme mal o astado entrou na sua cara, resistiu ao derrote por alto e contou com a coesão do grupo para selar a pega à primeira, como quem trava uma cheia antes que ela encontre saída.
Depois, Joaquim Grave citou com voz de homem feito, carregando cedo em três ocasiões. No recuo, o azar de um escorregão trouxe-lhe um toque duro, mas voltou à cara com mais calma, conseguindo boa reunião. O toiro, no entanto, rompeu a represa e fugiu do grupo com um derrote seco. À terceira tentativa, um piton na barriga travou de novo a reunião. Só à quarta, com ajudas carregadas e corpo inteiro na luta, conseguiu estancar a investida.
Pelos Amadores das Caldas da Rainha, entrou Martim Graciosa, que citou a passo até aos tércios e carregou a sorte. O toiro veio com pata, permitindo-lhe reunir, mas sem fechar de pernas. À porta dos curros, sacudiu-o e a indecisão das ajudas deixou a pega por consumar. Na segunda, um toque nos joelhos deixou-o descomposto e pendurado nos pitons, de onde se soltou. Na terceira tentativa sofreu do mesmo mal: ajudas que não chegaram a tempo. Só à quinta, com os elementos que o seguiam a carregar, se fechou a comporta, embora a fotografia final não favorecesse o grupo. A encerrar, Salvador Serrenho teve de ir aos terrenos do animal para lhe arrancar a investida. O arranque foi de manso, mas fechou-se à córnea com decisão, bem seguro por uma primeira ajuda poderosa. A restante formação consolidou a pega, concluindo assim o trabalho dos homens que sabem que, para parar a água, é preciso mais do que força, é preciso entrega!
O fecho do pomar e um autêntico jogo do lenço
E como em qualquer pomar do Oeste, onde a fruta precisa de água no tempo certo e de sol sem exagero, também na arena há quem decida quando regar de música ou aquecer de aplausos. Hoje, a direção de corrida esteve nas mãos da Delegada Técnica Tauromáquica Ana Pimenta, que pareceu, em muitos casos, brincar ao infantil jogo do lenço: ora colocava o pano branco anunciando “água”, fazendo a música correr sem critério, ora acenava em “fogo”, havendo voltas que chegavam autorizadas aos artistas sem que o merecessem. Tudo foi errado? Não! Pedrito de Portugal, na sua primeira lide, não recebeu música nem volta, pois o seu trabalho não ofereceu qualquer motivo para rega ou calor e neste caso a inteligência esteve bem a analisar (mal seria perante o que se passara!). A seu lado, o médico veterinário Dr. José Luís Cruz velava pela saúde do gado e o cornetim José Henriques soprava notas que lembravam que, mesmo quando a fruta não está perfeita, a música pode refrescar o pomar. Mas, se hoje a água corria e o fogo ardia, pareceu ocorrer sem rei nem roque, tornando cada volta e cada pasodoble numa qualquer fruta do Oeste colhida antes de tempo. E de forma entediante terminou esta tarde nas Caldas da Rainha!
Texto e Foto: Rodrigo Viana