Por: Rodrigo Viana
*Quando a dor é usada como bandeira*
Há lutos que pedem silêncio. O da família de Manuel Maria Trindade, um rapaz de 22 anos que tombou em praça na noite do Campo Pequeno, é um deles. Não é decente transformar a dor crua de uma mãe em combustível para proclamações apressadas, cartazes fabricados e “cartas abertas” redigidas a quente. O país acordou com iniciativas partidárias, resoluções e projetos de lei tirados da gaveta no dia seguinte. O cadáver ainda não arrefecera e já havia quem medisse ganhos de agenda. É isto política pública? Ou apenas oportunismo de ocasião?
*Constituição não é papel decorativo*
Portugal não é um quadro em branco onde se apaga tradição com uma esponja moral. A Constituição da República é clara: o direito à fruição e criação cultural é de todos e o dever de preservar o património cultural é do Estado. Não é mera sugestão, é norma: artigo 78.º. Acresce que a liberdade de criação cultural e artística é livre, como estipula o artigo 42.º. Quem pretende extinguir formas de expressão cultural deve demonstrar, com seriedade, que a restrição cumpre o princípio da necessidade e da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º.
Daqui não se segue que “vale tudo”. Segue-se, isso sim, que não se legisla ao sabor da comoção. Se a política quer intervir, que o faça com estudos robustos, avaliação de impacto, audição das partes e respeito pelo quadro constitucional.
*O que a lei portuguesa realmente diz*
Em Portugal, a regra é clara: não há morte do touro em praça. É a chamada “corrida à portuguesa”. Existem exceções de tradição local, como Barrancos, previstas expressamente em lei (Lei n.º 92/95 e regime excecional de 2002). Distorcer esta realidade para insinuar que “se mata por desporto” em todo o lado é intelectualmente desonesto.
É precisamente aqui que a Lei n.º 92/95, de 12 de setembro, ganha relevância. Este diploma estabelece as normas gerais de proteção dos animais, proibindo atos de violência injustificada, mas reconhecendo explicitamente as exceções culturais e tradicionais que possuem enquadramento legal. É com base nessa lei que o regime excecional de 2002 autorizou a manutenção das “corridas de morte” exclusivamente em Barrancos, onde esta prática tem um valor histórico e identitário único. Fora desse contexto, a morte do touro em praça não é permitida. Esta regulamentação prova que o Estado não ignora o bem-estar animal; ao contrário, cria um equilíbrio entre proteção e tradição, consagrando a tauromaquia como expressão cultural juridicamente reconhecida e fiscalizada.
Mais: o próprio regime administrativo atribui à IGAC a licença, fiscalização e direção dos espetáculos, com diretores de corrida e médicos veterinários de serviço. Isto não é faroeste: há regras, há autoridade, há supervisão técnica.
E quanto aos menores, o Governo anunciou, em 2021, a alteração da classificação etária para 16 anos, o que gerou confusão mediática entre “proibir” e “classificar”. Convém esclarecer: a classificação etária aconselha idades e estrutura a comunicação e a comercialização, não sendo um torniquete ideológico. O próprio setor explicou, à época, a diferença entre classificação e proibição.
*O que dizem os peritos (sem panfletos)*
É verdade que a literatura científica descreve respostas de stress nos touros em contexto de lide – incluindo cascatas catecolamínicas, alterações metabólicas e fadiga. Negá-lo seria negar a biologia. Mas é igualmente verdade que política pública não se faz de uma tabela de cortisol. Faz-se ponderando direitos culturais, segurança, bem-estar animal e proporcionalidade.
Do lado da proteção de menores, o Comité dos Direitos da Criança da ONU tem emitido observações recomendando maior restrição à presença de crianças em touradas, chegando mesmo a apontar os 18 anos em 2019 para Portugal. No entanto, convém sublinhar: são observações não vinculativas. Os Estados consideram-nas e acomodam-nas no seu ordenamento – como Portugal fez ao rever a classificação etária – mas isso não significa abolir uma prática cultural reconhecida legalmente e enraizada em múltiplos municípios.
*Ética não rima com oportunismo*
Invocar a “crueldade” para decretar o fim imediato de uma arte, ignorando que o modelo português mitiga a violência pública – não há morte em praça, salvo exceções legalíssimas – e que há supervisão veterinária obrigatória, é trocar o debate sério por hashtag. A ética começa por respeitar os factos e, sobretudo, o tempo do luto. Nunca poderá passar por capitalizar tragédias pessoais para tentar “suspender temporadas” à boleia da comoção.
*O caminho responsável*
O caminho é outro e passa, obrigatoriamente, por: respeitar a família – agora é tempo de condolências, não de megafones; cumprir a Constituição – qualquer restrição adicional tem de passar no crivo da proporcionalidade e da necessidade, demonstradas com dados, não com dedos em riste e aperfeiçoar a segurança – onde houver falha procedimental, que se corrija; onde houver risco, que se mitigue com melhor formação, meios e fiscalização.
O enquadramento já prevê autoridade e técnicos especializados que atuem com transparência reforçada.
*O silêncio que honra, a coragem que resiste*
Quando a dor se torna bandeira, a decência pede silêncio. Há poucos dias, uma mãe rasgou o peito em palavras, escrevendo a quem, com uma frieza difícil de entender, se vangloriava da morte do seu “menino de ouro”. Um filho que caiu de frente, com coragem e entrega, defendendo a tradição que amava. E uma mãe que, no meio do luto, ainda teve a grandeza de doar os órgãos do filho, transformando uma vida interrompida em várias vidas salvas.
Não há argumento mais forte do que este ato. Não há moral mais alta do que esta lição de humanidade.
A tauromaquia já enfrentou muitos vendavais e superou todos. Não porque seja intocável, mas porque vive enraizada na identidade de um povo que a entende, a sente e a respeita. Nenhuma carta aberta, nenhum projeto apressado, nenhuma exploração de tragédias pessoais apagará séculos de história, bravura e cultura.
À família de Manuel Maria Trindade, a palavra é de força e respeito.
À tauromaquia, a mensagem é clara: continuará viva, porque não se sustenta em aproveitamentos, mas sim em valores, memória e paixão. Podem erguer a voz contra ela, mas pouco se aproveita de quem aproveita a dor alheia. A tradição segue. Não se quebra com ventos passageiros: fortalece-se!