O tempo toureiro no centenário da José Marques Simões
O tempo, esse toureiro invisível que há cem anos se medeia com a eternidade, voltou a entrar em praça na José Marques Simões. As paredes redondas, que são ponteiros de um relógio feito de pedra e memória, marcaram a hora da primeira corrida da Feira Taurina de Arruda dos Vinhos, no ano do seu centenário. O compasso soou em três cavaleiros de sangue novo: Miguel Moura, António Prates e António Telles Filho, chamados a dar continuidade ao rito num relógio que nunca parou. Frente a eles, seis toiros de José Luís Cochicho, como badaladas de um sino antigo, trouxeram à arena a cadência da verdade. E porque não há relógio sem pulsar humano, foram os forcados amadores de Vila Franca de Xira e de Arruda dos Vinhos que deram corpo à coragem, cravando no tempo a marca da entrega coletiva. Assim começou esta noite de solene precisão, em que cada passe e cada pega foram tiques de um relógio maior: o da tauromaquia que resiste e insiste, geração após geração.
O festejo, de gala à antiga portuguesa, teve cortesias no típico formato com um cortejo evocativo, decorrendo o desfile que recria a pompa e o esplendor das antigas touradas reais do século XVIII. O cortejo é composto por figuras históricas como o Neto, os Pajens, os Charameleiros, os Porta Estandartes e inclui elementos como coches e a Azemola das Farpas, proporcionando uma viagem onde esse relógio dá uma série de voltas à retaguarda, com personagens e trajes da época.
Miguel Moura – o Rolex da noite
Tal como a marca suíça, símbolo de consistência, robustez e fiabilidade, Miguel Moura foi o cavaleiro mais sólido e seguro da noite, impondo o ritmo certo desde o início. Coube-lhe dar corda a esse relógio na sua primeira atuação, recebendo o toiro através de uma sorte gaiola que resultou emocionante, cravando nos médios e acendendo logo o compasso da noite. Iniciou depois a série de curtos, bregando e ladeando como quem faz meio-dia no mostrador, dando a volta completa à praça com o toiro preso na garupa da montada. Foram quatro curtas de mérito, sobretudo a primeira e a terceira, em que os ponteiros da emoção avançaram decididos. Sempre por cima de um astado colaborante e móvel, Moura imprimiu ritmo e brilho a uma lide que fechou com chave de palmo, como se cravasse a última badalada de um relógio antigo.
Frente ao quarto da noite, um toiro com muitas teclas por onde tocar e que motivou a chamada do representante da ganadaria a dar volta de agradecimentos, o jovem de Monforte teve uma atuação limpa de erros, bregando como na atualidade nenhum outro faz, aguentando a investida intempestiva do astado. No que toca a cravagem soube controlar bem a questão das distâncias e dos tempos de lide, deixando quatro curtas de qualidade e um palmito à meia volta após os vistosos ladeios que executou.
António Prates – o TAG Heuer da garra e do risco
A marca é associada à velocidade, ao risco e à ousadia e Prates, nesta noite, viveu entre acelerações, tropeços e momentos de garra, marcando a noite como um cronógrafo de corrida.
O toiro da divisa titular que lhe coube era distraído, com sinais de manso mas encastado, como quem se esquiva ao compasso certo do tempo. À primeira comprida, a fera apertou, investindo com alegria e agressividade, testando logo a pulsação da faena. Na série de curtos, Prates iniciou com uma bandarilha em que a reunião não foi tão ajustada como o relógio exigia, mas rapidamente acertou o ponteiro: na segunda, a cravagem ao estribo foi de boa nota e fez soar os acordes da banda local, como um carrilhão que desperta o público. No terceiro ferro, as distâncias foram mal medidas, concedendo toques na montada tanto na sorte como no remate, instante em que o tempo quase lhe pregava uma partida, não fosse o toiro ir-se abaixo das mãos no exato momento em que podia colher. Fechou a sua função com uma sorte mais sesgada na zona dos tércios despedindo-se como quem deixa o ponteiro a meio caminho da hora, sem o brilho inteiro que ambicionava.
O toiro saído em 5.º lugar saiu a gasolina, impondo pela velocidade que imprimiu. Esteve guerreiro o toureiro, que teve de suplantar a passagem do toiro ao regime do Armando, às vezes a pé, às vezes andando para tábuas, procurando desta forma dificultar o labor do ginete. Lide difícil mas de enorme entrega de Prates, que não baixou os braços, conseguindo momentos de relevo efetivo tanto na brega como na cravagem. Dois curtos frontais de boa nota, seguidos de duas sortes sesgadas de uma coragem imensurável. Enorme atuação do cavaleiro de Vendas Novas, a provar que os mansos também têm lide e que podem ser de qualidade.
António Telles Filho – o Cartier da tradição
Cartier é sinónimo de elegância intemporal e herança familiar. Assim foi Telles Filho: entre altos e baixos, mostrou estilo clássico, à imagem da prata da casa, evocando a tradição da dinastia Telles.
Chamado a dar continuidade ao compasso da noite, enfrentou um toiro distraído, mais atento à teia do que à arena, como ponteiro que se recusa a alinhar com o mostrador. Após uma falsa partida, em que o primeiro comprido terminou no chão, optou por cravar três compridos à tira, marcando a cadência possível. O conceito artístico de Telles Filho não deixou de se mostrar: no seguimento das pisadas do seu pai, adotou um estilo clássico, onde as abordagens frontais são a prata da casa e onde cada ferro busca ser badalada limpa. O segundo curto teve boa execução, ainda que seguido de uma passagem em falso. Mais na alma do que na razão, avançou decidido para a terceira da série, insistindo em marcar o tempo à sua maneira. Sem conseguir prender a atenção do oponente, recorreu em duas ocasiões ao gesto simbólico de lançar o tricórnio, numa tentativa de espevitar o astado e fazê-lo rodar o ponteiro da emoção. Terminou, no entanto, com aquele que foi o ferro da sua lide, cravado como última batida de um relógio que, mesmo assimétrico, não deixou de marcar presença no centenário da praça.
Frente ao último da corrida, teve o mérito e o engenho de o saber ler, escolhendo os terrenos a preceito. O momento da cravagem dos dois curtos com que iniciou a série foi de alto gabarito, de alto a baixo ao estribo. Entre as duas sortes referidas foi surpreendido por um forte toque na montada junto a tábuas que poderia ter sido totalmente evitado. Com o toiro já completamente esgotado e encostado a tábuas, insistiu em cravar um palmo, tendo sido necessária a intervenção dos seus peões de brega para deixar o ferro.
Forcados – a tradição de Vila Franca e a vitória limpa de Arruda
Vila Franca de Xira, grupo histórico e veterano, abriu praça.
Vasco Carvalho citou até aos tércios e concretizou à primeira, com ajudas firmes e coesas. Rodrigo Camilo também cumpriu ao primeiro intento, mas o grupo não acompanhou de forma decidida, permitindo que o toiro fugisse às tábuas, ainda assim sem comprometer a pega.
Já André Câncio viveu o maior desafio da noite: depois de resistir à primeira mangada vertical, não suportou a segunda e foi sacudido. Na segunda tentativa o derrote não deu hipóteses, e na terceira, apesar de boa reunião, faltaram ajudas. Só ao quarto intento, com ajudas carregadas após soar o aviso, a pega foi consumada.
Arruda dos Vinhos, os anfitriões, tiveram noite de triunfo e eficácia: três toiros, três pegas à primeira.
Nuno Aniceto avançou a passo, citando com calma e suportando investida ensarilhada com eficácia. Rodrigo Gonçalves rubricou uma das melhores da noite, com acoplamento perfeito e viagem impetuosa, fechando-se como lapa. Tiago Carreira encerrou com competência e decisão, também ao primeiro intento.
O Relojoeiro da Praça: Direção impecável e ambiente de harmonia
A direção do festejo coube ao delegado técnico tauromáquico José Soares, assessorado pelo médico veterinário Dr. Jorge Moreira da Silva e pelo cornetim José Henriques. Como um relojoeiro que ajusta cada engrenagem com precisão, José Soares garantiu que a corrida decorresse de forma fluida e segura, sem falhas, permitindo que cada ponteiro — cavaleiros e forcados — cumprisse o seu ritmo. A harmonia reinante entre praça, público e artistas foi a prova de que, quando o tempo é bem medido, toda a maquinaria funciona em perfeita sintonia.
Texto e Foto: Rodrigo Viana