Na aldeia avieira de Caneiras, o festival Raízes Vivas levou a tradição também à arena, numa tarde marcada pela chuva e pela resiliência do público. Entre altos e baixos, destacou-se Tristão Telles de Queiroz, que fechou a corrida com três curtos de excelente execução, considerados os melhores da tarde. Nos forcados, brilho repartido: Pedro Figueiredo abriu com segurança para Santarém, enquanto Martim Castelo, do Aposento da Moita, emocionou ao brindar a pega ao pai, consumando à primeira. O curro, com toiros de Oliveira Irmãos e das Sesmarias Velhas do Guadiana, esteve bem apresentado para a praça em questão, sendo o sexto exemplar o melhor da corrida. O simbolismo maior chegou pelo cornetim Pedro Lopes, que honrou as pisadas do avô, dando continuidade à herança familiar.
Crónica:
Entre o Tejo e a mesa, a vida faz-se de raízes. E não há raízes mais fundas do que as das aldeias avieiras, erguidas em madeira e esperança, quando os homens de Vieira de Leiria desciam o referido rio à procura de sustento. São casas suspensas sobre estacas, contra as cheias e o tempo, são histórias que cheiram a fogueiras de inverno e a peixe fresco a chiar na frigideira. São memórias vivas que se transformam, agora, em festa.
Neste sábado, bastante instável no que toca à meteorologia, Caneiras, aldeia avieira às portas de Santarém, vestiu-se de gala para o Raízes Vivas, um festival que cruza tradição e modernidade à mesa e fora dela. Aqui, a gastronomia é liturgia: do torricado de javali ao naco de toiro avinhado com magusto, passando pela paella de lagostim e siluro, tudo convida à partilha, como se cada prato fosse também um pedaço de rio servido em travessa. Os chefs chegaram de norte a sul, trazendo sotaques e saberes, mas foi o Ribatejo que lhes deu corpo e sabor.
E porque a tradição não se cumpre só no prato, a tarde abriu-se em praça. Às 16 horas, deu-se início a uma corrida de toiros que juntou três nomes: Manuel Telles Bastos, Parreirita Cigano e Tristão Telles de Queiroz. Nas pegas, a resiliência foi repartida entre os Forcados Amadores de Santarém e os do Aposento da Moita, medindo forças com seis toiros, três com ferro de Oliveira Irmãos e três das Sesmarias Velhas do Guadiana.
Manuel Telles Bastos lidou um primeiro toiro reservado de início, mas que foi crescendo à medida que a função se desenrolava. Após alguns desencontros, acabou por encontrar os terrenos certos e impor-se ao oponente. Frente ao segundo do seu lote, já com parte do público a recolher-se da intempérie, conseguiu um segundo comprido de muito boa nota e, apesar de algumas passagens em falso, rematou a função com uma série de curtos, onde se podem retirar alguns pontos positivos, tirando partido da colaboração do novilho. A atuação não foi limpa, mas mostrou sempre vontade de vencer dificuldades.
Parreirita Cigano teve um arranque inconsistente em compridos. Com um toiro colaborante, de investida franca, podia ter construído uma faena de maior dimensão, mas as distâncias e os momentos das reuniões não o ajudaram, resultando na cravagem de ferros de má colocação. Ainda assim, deixou dois curtos frontais, cravados com cingimento, que ‘salvaram a atuação’. No quinto da ordem, frente a um exemplar de boa presença, encontrou mais dificuldades: só ao terceiro intento conseguiu deixar o primeiro comprido. Com o toiro a procurar com o desenrolar da lide, algum refúgio em terrenos de dentro, teve de insistir até encontrar espaço. Destaque para o primeiro curto, numa reunião ajustada, terminando com a cravagem de dois palmitos.
Tristão Telles de Queiroz enfrentou o terceiro da tarde já sob forte precipitação, perante um público resiliente, abrigado sob chapéus de chuva mas que não arredou pé. O toiro mostrou falta de força, condicionando em parte o labor do toureiro. Ainda assim, Tristão deixou dois curtos de grande qualidade, rematados com elegância e respeito pelas condições do astado. A chuva intensificou-se e até a banda se viu forçada a abandonar o posto, numa decisão compreensível para protecção dos instrumentos. No último da corrida, encontrou um toiro de grande nobreza e prontidão, que lhe permitiu brilhar. Após uma única passagem em falso, fruto de uma batida antecipada, cravou três curtos de excelente execução, que considero os melhores da tarde, confirmando a qualidade do binómio e fechando a função com chave de ouro.
Nas pegas, os Amadores de Santarém abriram praça com Pedro Figueiredo. Jovem e inexperiente, manteve uma calma surpreendente no cite, carregou a tempo e fechou-se com eficácia ao primeiro intento, não se deixando enganar pelo ligeiro ensarilhar do toiro. Seguiu-se António Almeida, que precisou de três tentativas: nas duas primeiras, esteve correto no cite, mas faltaram ajudas rápidas; à terceira, com mais coesão do grupo, consumou de forma segura. A terceira pega coube a Manuel Cabral, que citou com competência e recebeu duro embate. Fechou-se com afinco, apesar da falta de auxílios iniciais, e consumou ao primeiro intento, mostrando fibra.
Pelos Amadores do Aposento da Moita, Martim Castelo foi o primeiro. Brindou ao pai, Rodrigo Castelo, chef estrelado e organizador do evento, cumprindo com estilo: citou com firmeza, carregou bem e consumou à primeira, numa viagem suave e franca. Rodrigo Aranha, de andamento lento no cite, arrancou a investida quando quis e aproveitou a docilidade do toiro para se fechar com tranquilidade ao primeiro intento. Já Rodrigo Cartaxo fechou o lote com uma pega exemplar, desde o cite à reunião, consumando com qualidade logo à primeira.
Os toiros de Oliveira Irmãos (1°, 3° e 5°) e das Sesmarias Velhas do Guadiana (2°,4° e 6°), cumpriram em apresentação e mobilidade, permitindo aos cavaleiros expressar os seus conceitos. Destacou-se pela positiva o sexto da ordem, exemplar vindo do Baixo Alentejo, que deu espetáculo e ajudou à construção da melhor lide da tarde.
A corrida foi dirigida por Marco Cardoso, assessorado pelo Dr. José Luís Cruz. O cornetim foi Pedro Lopes, neto de José Henriques, um nome de peso nesta função. O jovem segue as pisadas do avô com segurança, marcando com clareza os tempos da corrida. Um gesto simbólico que reforça a herança e a continuidade da tradição na sua família.
Com lotação a rondar meia casa fraca que foi diminuindo com o agravar das condições climatéricas, o que mais impressionou foi a resiliência de parte do público, que resistiu a uma forte chuvada e permaneceu firme na bancada, fiel à festa brava e ao espírito de celebração que o Raízes Vivas quis erguer.
É a ruralidade que se faz espetáculo, a liturgia que passa da missa e da procissão para a arena, e da arena para a mesa farta ao cair da noite. Porque no fundo, o que o Raízes Vivas celebra é essa unidade antiga entre rio, terra e gente: o sabor da vida partilhada, na dureza e na celebração!
Texto e Foto: Rodrigo Viana